Ainda não há muito tempo, um banqueiro agora caído em desgraça asseverava numa das nossas televisões que tudo era negociável. Falava-se então do salvamento de Portugal por um certo trio a que se dá por essa Europa fora o nome russo de «troika», talvez porque os que nela, Europa, mandam atualmente tenham quase todos passado pelos partidos comunistas nos anos 60 e boa parte dos 70.
Ontem, o inimigo era o capital, o liberalismo, os mercados; hoje, como que por encanto, aqueles irredutíveis inimigos acabaram por se tornar nos melhores amigos, constituindo essa, entre muitas outras, a razão mais forte para que tudo seja permitido a um banqueiro dizer e fazer, sem que alguém se digne pô-lo na ordem. Quando isso acontece – o que, em boa verdade, nunca acontece -, é só porque o dito foi apanhado com a mão no cofre, tornando-se desse modo difícil fechar os olhos. Há quem chame a isso «a justiça a funcionar», mas o que mais parece é o negócio a funcionar, pois, para bem da sua sobrevivência, há que renovar e apostar em novas e insaciáveis fomes.
O leque dos negócios é infinito. Eles são tantos e tantos …. Desde o que é imprescindível à vida até ao que é prescindível à morte, passando pelo crime (que hoje já tem foros de contribuição para o PIB) e acabando no greenwashing do lixo, tudo serve para fazer dinheiro, muito dinheirinho, para não dizer pipas de massa, termo de requintado luso-linguajar que, quem sabe, por estes e outros andares, talvez venha um dia a figurar nos manuais de Língua e Literatura Portuguesa.
São, assim, múltiplos os negócios que as janelas da mundialização abriram e os convictos do «tudo é negociável» impuseram, graças às cumplicidades referidas e, naturalmente, graças a respeitabilidades mais que duvidosas. Refiro-me em concreto a um aspeto muito pouco falado entre nós, mas que está intimamente ligado ao reino do dinheiro, que é o da obstinação em prosseguir (depois das gesticulações habituais provenientes de subsidiadas comissões de bioética) pesquisas ilegítimas em embriões humanos, invariavelmente ditadas por razões financeiras de investidores privados. Para esses investidores, já se vê, não importa que o bem e a dignidade do homem estejam em causa e, muito menos, o que é moralmente aceitável. Para eles apenas contam os aspetos técnicos da ciência (que costumam revestir de um jargão incompreensível) e a rentabilidade dos seus sinistros projetos. Milhões, em suma!
As comissões de bioética, no seu papel utilitarista, são impotentes para combater a lógica de mercado, deste tipo de mercado, passando mesmo a ignorar a natureza do homem e o fundamento da sua dignidade e, na prática, acabando por permitir a coisificação do ser humano, o que faz com que o embrião se torne num simples fim de investigação científica. Isso, e não só, favorece, como é óbvio, todo o tipo de comércio do corpo, já «normal» em certas regiões do mundo, a que se juntam os não menos «normais» alugueres de úteros.
O absurdo de tudo isto é que nada disto choca. O homem – antiga criatura de Deus – está aos poucos a ser reduzido a uma fabricação técnica sem a mínima preocupação de filiação, ao ponto de já poder ser concebido como um meio e em nada importar quando e onde. O que importa, sim, é o dinheiro para o pagar. E que seja perfeito!
Veja-se o caso recente de um bebé que, por ter nascido com trissomia 21, foi abandonado pelo casal de pessoas do mesmo sexo, australianas, que o mandou fazer a uma pobre e infeliz tailandesa de 21 anos de idade. Vítima de uma má triagem dos embriões, a jovem oriental deu à luz um ser mal feito, que só não abortou porque a mãe da portadora se opôs firmemente à vontade dos compradores. Resultado: o referido casal não pagou e desfez-se do nascituro como se de uma coisa com defeito de fabrico se tratasse.
Dir-me-ão que o caso referido não passa de um caso extremo e isolado. Talvez seja. Porém, não invalida que o homem esteja cada vez mais condenado a ser um mero objeto, presa de uma ciência sem ética, pasto de negócios inconfessáveis e vítima do comunitarismo sem escrúpulos que os políticos, todos sem exceção, patrocinam e acalentam, fazendo com que tudo, inclusivamente a alma, seja afinal negociável.
**Por Dantas Rodrigues, advogado, sócio-partner na Dantas Rodrigues & Associados