A alteração do matrimónio legislado e em vigor desde Junho de 2010, tem posto em ebulição a família tradicional portuguesa, maioritariamente conservadora nos seus princípios e nos seus hábitos. Este fervilhar de emoções e sentimentos contraditórios tem vindo a desfazer os laços parentais que se julgavam sólidos, transportando para os escritórios de advogados toda uma série de dilemas para os quais o cliente procura, muitas vezes desesperadamente, solução.
E um desses dilemas é o da deserdação. «Tenho um grave problema com a minha filha! Quero deserdá-la de todo o património!», eis algumas das palavras que, com cada vez mais frequência, se ouvem quando as situações de rotura familiar já atingiram o limite.
Entre um sem-número de causas que podem estar na base dessas situações de rotura, avultam problemas impensáveis há bem poucos anos, como por exemplo diferentes orientações sexuais entretanto reconhecidas pela lei, para além daquelas bem conhecidas como o companheiro(a) problemático(a), a mudança de relacionamento com elementos do núcleo familiar ou o abandono, neste caso muitas vezes ostensivo, a ponto de os filhos passarem pelos pais na rua como se de estranhos se tratassem.
O abandono traz sempre consequências de magna gravidade, sejam elas de ordem física ou económica, sem, evidentemente, esquecer aquelas que se revestirão porventura de maior importância, que são as de índole psicológica. A dor, a humilhação, o sofrimento, o desprezo, quando vêm de quem tem o dever de prestar assistência e cuidados, são sentimentos que marcam de forma negativa e permanente a vida das pessoas e, por maioria de razão, a vida de um pai ou de uma mãe.
A família identifica-se pela comunhão de vida, de amor, de afecto nos planos da igualdade, da liberdade, da solidariedade e da responsabilidade recíprocas. Daí resulta um conjunto de direitos e obrigações que preenchem a relação entre pais e filhos. A separação judicial de pessoas, o divórcio ou uma dissolução de uma união de facto não alteram as relações entre pais e filhos.
O Código Civil prevê que o cônjuge, os descendentes (filhos) e os ascendentes (progenitores), da pessoa falecida têm sempre, por regra, direito a uma porção de bens de que o testador não pode dispor e à qual se dá o nome de legítima.
A legítima constitui um direito sucessório atribuído por lei em atenção ao vínculo familiar. É exactamente quanto a essa porção de bens que se coloca a possibilidade da deserdação, e a qual consiste numa cláusula testamentária em que se declara a causa de deserdar prevista pela lei, privando um ou mais herdeiros da sua legítima, excluindo-os assim de todo o processo sucessório.
A deserdação só pode dar-se em determinadas circunstâncias, a saber:
a) Ter sido o sucessível condenado por algum crime doloso cometido contra a pessoa, bens ou honra do autor da sucessão, ou do seu cônjuge, ou de algum descendente, ascendente, adaptante ou adoptado, desde que ao crime corresponda pena superior a seis meses de prisão;
b) Ter sido o sucessível condenado por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas;
c) Ter o sucessível, sem justa causa, recusado ao autor da sucessão ou ao seu cônjuge os devidos alimentos.
Acrescente-se ainda que a deserdação de um sucessor pressupõe sempre, da sua parte, uma ausência absoluta de sentimentos primários e fundamentais, indispensáveis a uma boa e saudável relação familiar, e que são o amor, o afecto, o carinho e a gratidão.
O herdeiro legitimário pode ainda ser deserdado se, de modo intencional, praticar actos contra a pessoa, a honra e os bens do autor da herança, bem como se o injuriar, caluniar, prestar depoimento falso, ou praticar maus actos na pessoa da sua madrasta, do seu padrasto, do seu filho ou do seu neto.
O mesmo ocorrerá se o herdeiro, por abandono afectivo do autor da sucessão ou do seu cônjugue, se recusar a prestar-lhe alimentos, ou eximir-se a fornecer-lhe o que é indispensável para o seu sustento, habitação e vestuário.
A deserdação mais não é do que uma maneira de reprimir um acto representativo de desamor, de ingratidão e de desrespeito por quem, de um momento para o outro, se tornou indigno. A deserdação é sempre passível de impugnação, por via de uma acção judicial intentada pelo herdeiro com fundamento na inexistência da razão invocada. O prazo dessa impugnação caduca, diga-se, por fim, dois anos após a abertura do testamento.
**Por Dantas Rodrigues, sócio-partner da Dantas Rodrigues & Associados