Dantas Rodrigues

Advogado

Ainda há juízes em Milão

Nos últimos anos, principalmente nos países do sul da Europa, tem-se generalizado o sentimento de desconforto quanto à eficácia do sistema de justiça. As razões são múltiplas e variadas. Aponte-se a crise económica, que tudo tem levado de rojo, o insucesso (ou as vitórias morais, o que vai dar no mesmo) no combate à corrupção, mais as sucessivas demonstrações de abuso das classes políticas, sempre de olho posto em chorudos envelopes, para alimentar o desânimo dos cidadãos e assim contribuir para a falta de confiança e de respeito pelo Estados.

E como um mal nunca vem só, mandam-se os valores às urtigas, fazendo entrar no Produto Interno Bruto dos países (vulgo PIB) dinheiros provenientes de actividades criminosas nesses mesmos países, apenas porque, para os burocratas de Bruxelas, o que conta é o negócio. Limpo ou sujo, tanto se lhes dá, o que conta é o negócio. Assim, não admira que os donos do submundo do crime económico saiam à luz do dia e apareçam em todo o lado com ares de respeitabilidade, sempre rodeados de gente que lhes trata da imagem, tanto nos jornais, como nas televisões. Públicas virtudes, vícios privados!

Não é difícil de imaginar as dificuldades que a lei tem diante de si sempre que procura fazer frente a esses senhores (ou senhoras, manda a paridade de sexos). Os magistrados Giovanni Falcone e Paolo Borsellino, e o diretor fiscal Rocco Chinnici, são nomes que já não pertencem ao número dos vivos, e que perderam a vida na luta contra o crime organizado, mostrando desse modo bem trágico o papel insubstituível da magistratura na credibilidade do sistema de justiça.

Esse papel, se nem sempre é devidamente honrado pelos próprios, ainda vai tendo uns quantos verdadeiramente dispostos a defender essa tal credibilidade, cada vez mais ofendida. Bastará, para tanto, lembrar o juiz Marc Trévidic, cognominado no seu país, a França, de «juge de combat» ou «juge batailleur, ou o seu confrade Renaud van Ruymbeke, que Sarkozy, Christine Lagarde e Christiane Taubira, todos os três por motivos diferentes, mas igualmente inconfessáveis, tanto devem odiar.

Mas não só de França nos chegam sinais de seriedade na magistratura. Também de Itália acaba de vir uma lição de elevadíssima liberdade de consciência. E ela foi dada ao mundo jurídico, no passado dia 16 de Outubro, pelo juiz-conselheiro, Enrico Tranfa, ao demitir-se da magistratura por desacordo pela decisão tomada pelo Conselho do Tribunal de Recurso de Milão ao absolver o anterior chefe do governo italiano Silvio Berlusconi da pena de sete anos de prisão pelos crimes de abuso de poder e incitação à prostituição.

O dito tribunal considerou que «não existiam provas» de que Berlusconi sabia que «Ruby» era menor. Para quem não sabe, ou já não se lembra, «Ruby» é (ou era) o «nome artístico» da marroquina Karima el-Marough envolvida nas famosas festas conhecidas pelo nome simiesco de «bunga-bunga».

Perante tão hipócrita decisão, Enrico Tranfa considerou não existiram mais condições para continuar a administrar a justiça e «pendurou a toga». Esse gesto, após ter assinado o acórdão de absolvição, no qual participou mas saiu vencido, é bem elucidativo da qualidade da pessoa humana que soube manter, ao longo de 39 anos de magistratura, um compromisso ético e moral.

É verdade que a escolha de uma profissão constitui sempre uma decisão pessoal livre, mas também não é menos verdade que, ao ingressar numa profissão, há um conjunto de deveres que são obrigatórios e indissociáveis da mesma. No caso concreto da magistratura, a deontologia profissional é o «toque» que distingue um juiz de um licenciado em Direito, ou seja, o compromisso com valores éticos e morais.

Os cidadãos exigem dos magistrados uma conduta exemplarmente ética. O que se pode perdoar na conduta de um cidadão comum, não pode nunca ser aceite num magistrado. A essência da função jurisdicional deve, por conseguinte, combinar a integridade do juiz e a lei.
Na Prússia, em 1745, um moleiro, a quem os nobres quiseram certo dia despejar do seu moinho e os tribunais não permitiram, disse ao seu rei, Frederico-o-Grande, «Ainda há juízes em Berlim». Hoje, em 2014, e com os partidos políticos a ocupar o lugar dos nobres, podemos dizer que ainda há juízes em Milão.

** Por Dantas Rodrigues, sócio-partner da Dantas Rodrigues & Associados