Dantas Rodrigues

Advogado

As cruzes e os ladrões

As Ordens Honoríficas Portuguesas destinam-se a galardoar ou a distinguir, em vida ou a título póstumo, os cidadãos nacionais que se notabilizem por méritos pessoais, por feitos militares ou cívicos, por atos excecionais ou por serviços relevantes prestados ao país, podendo também ser atribuídas a cidadãos estrangeiros, como membros honorários de qualquer grau.

É dever dos titulares das Ordens Honoríficas Portuguesas defender e prestigiar Portugal e regerem a sua vida, pública e privada, pelos ditames da virtude e da honra.
O Presidente da Assembleia da República e o Primeiro-Ministro podem propor a concessão dos graus de qualquer Ordem a cidadãos nacionais ou estrangeiros, embora a concessão de qualquer grau das Ordens Honoríficas Portuguesas seja da exclusiva competência do Presidente da República como Grão-Mestre das Ordens.

Recompensar alguém por altos serviços prestados à nação parece, finalmente, começar a fazer algum sentido entre nós. E em boa hora o bom senso vai chegando, timidamente é verdade, pois o desprestígio que reinava era demasiado, para não dizer mesmo chocante. São conhecidos casos de condecorações a pessoas (esqueçamos, por ora, as instituições) que fazem corar de vergonha qualquer cidadão, sem referir, claro, o desrespeito com que foi tratado o próprio país pelos nossos presidentes que, por razões culturais, não se cansaram de distribuir medalhas a esmo, tendo por único e válido critério agradar aos seus amigos e/ou aos amigos dos seus amigos.

Bastava ter amigos que, por sua vez, tivessem amigos que fossem amigos de alguém pertencente à Chancelaria das Ordens Honoríficas e pronto: a venera estava garantida! É verdade, passe o cinismo, que aparentemente não vinha daí grande mal ao mundo, pois uma «cruz» não dá dinheiro, mas, em termos de ética, o ato era absolutamente reprovável e, pior, provocava a descrença nos cidadãos, pois nem todos são analfabetos. Podemos não estar de acordo com uma condecoração atribuída a alguém de quem não gostemos, mas que tem trabalho feito, mau ou bom, a História ajuizará. Coisa bem diferente é vermos gente absolutamente inútil, sem nada que possa abonar a favor da sua passagem pelo mundo, a ser distinguida em cerimónia oficial, com o respetivo chamamento e enumeração de feitos, tudo rodeado de grande pompa e circunstância.

Esses tempos do esquemazinho e da cunha talvez comecem a ter os seus dias contados, sendo, de facto, para aí que se caminha, pois já se vislumbram, pelo menos, alguns sinais de moralização que me apraz aqui registar. Não será ainda o que se espera para credibilizar o país e as suas condecorações, algumas das quais reputadas de mais importantes e antigas da Europa, mas não há dúvida que o rumo a seguir é este e não outro. Veja-se, por exemplo, o que se passou com o antigo primeiro-ministro José Sócrates, que os seus correligionários de partido não cessavam de clamar para que fosse condecorado, estranhando que o Presidente da República se demorasse tanto a fazê-lo.

Viu-se o que aconteceu depois. Esse ex-primeiro-ministro de Portugal foi parar a Évora, com o número 44, e os seus correligionários, embora pensem bem do que ele fez e não hesitem em pôr as mãos no lume pela «honestidade» do homem, nunca mais falaram em condecorações.
Passo não menos importante, tendente a dignificar e zelar pelo prestígio do Estado e de todos aqueles que ele distingue, foi a recente exautoração das condecorações que receberam das mãos de Mário Soares e de Jorge Sampaio, e respetiva expulsão da Ordem do Infante Dom Henrique, de dois conhecidos condenados por crimes de abuso sexual.

Ora bem: se isto não é dignificar o Estado, então o que será dignificação do Estado?
Somos, por natureza, desgovernados e ingovernáveis. Seja como for, há que começar por algum lado, e o de restituir ao Estado a sua dignidade perdida (pelo menos alguma) constitui um gesto de grande nobreza e merece os mais vivos aplausos de todos aqueles que acham que nos tempos de Roma, na via Ápia, se penduravam os ladrões em cruzes e que no Portugal de há bem pouco tempo se penduraram, em Belém, cruzes nos ladrões.

* Por Dantas Rodrigues, advogado, sócio-partner na Dantas Rodrigues & Associados