É durante o sono que o cérebro consolida a memória de acontecimentos recentes e importantes. É preciso estar acordado e atento para registar uma informação nova. Mas as mudanças nos circuitos cerebrais que vão fixá-la e permitir que seja recordada tempos depois só ocorrem mais tarde, enquanto se dorme.
Até aí os especialistas em sono e memória parecem estar de acordo. No entanto, as opiniões divergem no que diz respeito à maneira como ocorre a consolidação da memória e em qual das fases do sono isso acontece. Um estudo recente conduzido por investigadores elimina uma parte das dúvidas e questiona a ideia mais aceite até ao momento de como as memórias se tornam robustas durante o sono.
Numa série de experiências realizados com ratos, animais-modelo para o estudo do sono e da memória, cientistas de São Paulo e do Rio Grande do Norte (Brasil) demonstraram que no sono ocorre, sim, a eliminação ou “poda” das conexões (sinapses) mais débeis entre as células cerebrais, como haviam proposto em 2003 dois estudiosos italianos. Mas os brasileiros verificaram que, enquanto o animal dorme, também ocorre o reforço das sinapses. “O modelo sugerido por Giulio Tononi e Chiara Cirelli não está errado, mas é insuficiente porque dá conta de apenas parte da realidade”, afirma o neurocientista Sidarta Ribeiro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e coordenador do novo estudo.
Na pesquisa, Ribeiro e os seus colaboradores criaram em laboratório uma situação que simula a aprendizagem e depois acompanharam o que acontecia no cérebro dos animais. Nos testes o biólogo Julien Calais colocava os ratos (um por vez) numa caixa com a qual já estavam familiarizados e deixava-os explorar o ambiente à vontade. Depois acrescentava quatro objectos – feitos por ele próprio com escovas de sapato, pedaços de canalizações e tachas – com os quais os animais jamais haviam tido contacto. Como os ratos são animais curiosos e de hábitos nocturnos, Calais usou uma câmara que capta infravermelhos e permite filmar no escuro para se certificar de que o animal se interessava em conhecer os novos brinquedos.
O pesquisador esperava que o roedor passasse algum tempo a tatear os objetos com as vibrissas (bigodes) e depois mantinha-o acordado nos 90 minutos seguintes. De seguida, deixava o animal dormir três horas, enquanto acompanhava o seu sono com equipamentos que registam as alterações elétricas do cérebro. Com a ajuda da geneticista Elida Ojopi e do neurologista Koishi Sameshima, Calais observou que durante o sono REM – a mais curta das quatro fases do sono, na qual ocorrem os sonhos – certos genes codificadores de proteínas que formam as sinapses estão activos no hipocampo, a região cerebral que funciona como porta de entrada da memória.
É um resultado que nem todos esperavam observar. Alguns anos atrás Tononi e Cirelli demonstraram que, de modo geral, esses genes são progressivamente desligados à medida que os roedores adormeciam e se aprofundavam no sono. Com base nesses dados e nos de outros estudos, propuseram a chamada hipótese da homeostase sináptica. De acordo com esta ideia, uma informação nova – uma música que jamais se havia ouvido, por exemplo – é transformada em lembrança através de uma sequência de eventos químicos iniciada durante a vigília que cria conexões novas entre os neurónios. Durante o sono, as conexões mais frágeis, dos acontecimentos que serão esquecidos, são desfeitas.