André Gago, que dá vida a Nuno Sousa Pinto na novela “A Única Mulher” da TVI, está de luto. O ator perdeu o pai, o antigo ministro Carlos Corrêa Gago, que faleceu no dia de Natal, aos 81 anos. “Morreu em casa, rodeado por aqueles com quem partilhou a sua vida, num momento de intensa comoção e amor”, revelou o artista num texto emotivo que partilhou nas redes sociais.
“Foi um homem de afetuosidade expansiva, mas sempre amou profundamente a mulher com quem casou há quarenta e quatro anos, sempre amou profundamente os seus dois filhos, a minha irmã Patrícia e eu, e sempre amou profundamente as suas duas lindas netas, a Diana e a Maria”, acrescentou André, visivelmente abalado.
O funeral de Carlos Corrêa Gago – que foi ministro dos Negócios Estrangeiros e da Coordenação Económica e do Plano, em governos distintos, no final dos anos 70 -, vai realizar-se numa cerimónia privada.
Leia o texto na íntegra:
“Diz-se que instantes antes da morte vemos a nossa vida passar-nos diante dos olhos. Tenho a fortuna de poder testemunhar que o fenómeno só em parte é verdadeiro, porque se passou comigo, sem que eu tivesse tido de morrer deveras. Como tudo na vida, portanto, essa experiência pode acontecer a qualquer um, tal como aliás a morte. Foi há uns longínquos quarenta anos. Um grupo de amigos organizou um grande passeio a cavalo para os lados de Sintra, e o meu pai levou-nos com ele. Depois de atravessar a passo uma estrada de asfalto, metemos a galope pelo campo aberto diante de nós. Creio que o meu cavalo terá perdido uma ferradura sem que alguém tivesse dado conta disso. Por esse ou outro motivo, depois de meter a galope, o cavalo estacou subitamente, projectando-me por cima da sua cabeça. Foi durante esses breves segundos que eu perdi o contacto com a realidade e vi o filme da minha vida passar-me vertiginosamente diante dos olhos. Como era então muito jovem, o filme seria aquilo a que se pode chamar uma curta-metragem. Voltei a aterrar na realidade de encontro ao pó do chão. Não os pés, mas o rosto bem assente na terra. Não me magoei, voltei a montar, e o passeio prosseguiu.
Durante algum tempo guardei a memória das imagens que tinha visto passar diante dos olhos, que eram imagens que o meu cérebro guardara na sua câmara obscura de tudo o que os meus jovens olhos tinham visto até então. Com o tempo, essas imagens em movimento foram-se esbatendo, até não me recordar senão de uma, que ainda hoje tem nitidez suficiente para que a possa ver e rever. Vejo a relva da casa do meu pai baloiçar, com o muro branco ao fundo, ainda desprovido de arbustos. E vejo o meu pai acocorado diante de mim, de braços protectores abertos e estendidos, incitando-me a andar, enquanto eu ensaiava os primeiros passos. É uma recordação grata.
Não tardaria a dar, nos anos imediatos a este incidente, alguns maus passos, fruto de um certo desvario da minha juventude. E, ao longo da vida, outros tantos passos incertos dei, como toda a gente. Sei que o meu pai me guiou sempre, me amparou nas quedas e me ajudou a prosseguir caminho. Mesmo quando eu caminhei numa direcção sem tradição na família, para a incerta vida dos artistas, ele, apesar de apreensivo, apoiou-me. Tive a sorte de poder contar sempre com o seu respaldo, mesmo quando era acompanhado de um modo muito peculiar de vincar uma crítica a que entendia não poder poupar-me.
O nosso pai nunca foi um homem de afectuosidade expansiva, mas sempre amou profundamente a mulher com quem casou há quarenta e quatro anos, sempre amou profundamente os seus dois filhos, a minha irmã Patrícia e eu, e sempre amou profundamente as suas duas lindas netas, a Diana e a Maria. Chegámos até aqui, nas nossas vidas, contando sempre com o seu apoio, discreto mas perseverante. Isso agora acabou. Estamos entregues à nossa sorte. Os tempos são difíceis e, sem ele, vai ser ainda mais difícil arrepiar caminho. Mas ele ensinou-nos a todos a caminhar, um pé após o outro, e ensinou-nos a cair e a levantarmo-nos. Nestes últimos tempos, fomos nós quem procurou amparar a sua caminhada até ao fim inexorável. Com a entrega total da Memé, sua esposa tão dedicada, acredito que o ajudámos a alcançar a paz e a memória dos que gostavam dele, e que estas horas que vivemos estão preenchidas da mais suave dignidade e do mais profundo amor.
O nosso Pai morreu no dia 25 de Dezembro, em casa, rodeado por aqueles com quem partilhou a sua vida, num momento de intensa comoção e amor. É quase uma ironia que, num núcleo familiar essencialmente não crente, como ele nunca foi, ele tenha sido capaz de atrair tanto amor, tanta comunhão e tanta espiritualidade nas suas horas derradeiras. Só não se trata de uma ironia porque o amor não deve obediência a requisitos prévios. Por isso, a data da sua morte, que se repete todos os anos, será doravante para mim, e espero que para todos nós, não um dia de sombras mas de luz, um dia de grata recordação e memória de um homem querido, de um homem bom, de um homem que olhava para os outros homens como iguais, de um homem cuja única fé, inamovível, era a fé na Humanidade.
Adeus, Pai”.