O Carteiro toca sempre duas vezes
Regressei ao Carteiro. Disseram-me que o Hélder Sousa tinha mudado a cozinha e a carta e fiquei curioso. Até porque ela se passou para o meu lado. Mas já lá vou.
No regresso – há sempre um regresso, não pude deixar de pensar que as coisas mudam, principalmente para quem a elas regressa. E este antigo posto dos Correios, tão catita ali no desfiar do Douro trouxe-me à memória um filme impressivo – o daquele carteiro que, infortunadamente, tocou duas vezes, com as interpretações inesquecíveis de dois monstros do cinema – Jessica Lange e Jack Nickolson.
Para mim este Carteiro já tocou muitas vezes, mas tendo sempre gostado do restaurante – da localização, do seu timbre (quase pronúncia) regional, não fiquei completamente convencido no último ano, das propostas mais contemporâneas que Hélder Sousa trouxe de “encomenda”, desde que em 2014, vestiu a farda do Carteiro. Mas percebi que cedo ou tarde, o Hélder iria encontrar-se com o espaço, a sua estória, os seus “fidelis” e, sem perder o arrojo contemporâneo, regressar a uma origem regional que está no Adn daquela calçada íngreme que nos empurra para o rio.
As entradas são deslumbrantes. Atirei aos ovos verdes, como quem quer devorar a memória daqueles pic-nics feitos em Família. Mas ainda lá estava o bucho – tão bom, os cogumelos com queijo de cabra, as sardinhas ou o fígado de cebolada (farta e “babona”, como o exige a cultura nortenha), enfim, entradas de leão, à séria, feitas com amor, como as cartas lindas de Pessoa.
Mas a substância não diminui a prosa desta carta nova do antigo carteiro – provamos o Joelho confitado – pernil, para os que o conhecem nessa mais simples formulação. A repousar numa cama de grelos, salteada em alho e acolitada de feijão fradinho, deixava-se lascar como que a revelar que quem dela cuidou percebe bem os tempos lentos desta cozedura. E porque os percebe, atinge o clímax num prato que os espanhóis fazem tão bem e nós…, nem sempre. O rabo de boi, que precisa, de uma raspa de noz verdadeira (o meu segredo) uma cenoura a refogar na última hora, da redução feita num estufado que não passa os 70°. E este rabo de boi era sério e rigoroso, deixando-se pousar numa controversa, mas muito conseguida esmagada de batata. Descoberto que estava o truque fomos à bochecha, claro está. E, claro, está, resistiu ao teste da colher deixando cair e lascar e guardando a textura gorda para a explosão de sabores que sentimos na boca. Por este carteiro tenho mesmo que voltar mais vezes, deixei os bacalhaus e os arrozes (estou roído por os trincar), principalmente os de enchidos, para quando voltar a encomendar a alma e o estômago a esta belíssima casa de comer.
O crumble de maçã (dizem) e os gelados artesanais – o de alecrim com bacon é a estrela da companhia, merecem a tentação de não sair com “boca de lacaio”.
Carta de vinhos que sem ser ampla é justa e conhecedora. E um serviço que com o Hélder tem sempre o estímulo e a cumplicidade de sabermos, que ele sabe que nós sabemos.
E pronto, caros leitores, cá fica esta carta feita de novo pelo Hélder de Sousa, na boa hora de quem soube concitar a escrita nova, com o trapio e a memória antigas de uma grande casa de boa comida portuense.
FICHA TÉCNICA
Restaurante O Antigo Carteiro
Rua Senhor da Boa Morte, 55
Porto
Tlm: 937 317 523