Fátima Araújo, 39 anos, é uma das caras da RTP. Há 14 anos a trabalhar na estação pública de televisão, a jornalista mostra o seu lado mais pessoal com o livro “Por acaso”, que conta a história de cinco pessoas que sofrem de paralisia cerebral. A obra tem uma vertente solidária e por cada exemplar vendido 1 euro reverterá a favor da Associação da Paralisia Cerebral. A apresentação do livro, que conta com o prefácio do neurocirurgião João Lobo Antunes, acontecerá no dia 20 de outubro, na Casa da Música no Porto, data em que se comemora o Dia Nacional da Paralisia Cerebral.
À conversa com a Move Notícias, Fátima Araújo falou deste desafio e não só. A jornalista revelou as suas aspirações e como encara a profissão.
Move Notícias – Como surgiu o livro “Por Acaso…”?
Fátima Araújo – Surge na sequência de um projeto empresarial, a Imoa, que produz roupa que pode ser usada tanto por pessoas “ditas normais” como por pessoas com alguma necessidade especial. Ou seja, essa roupa tem características específicas e especificidades técnicas para pessoas acamadas ou com falta de mobilidade. Essa empresa faz um catálogo com a Associação de Paralisia Cerebral, sendo que os voluntários da instituição foram os modelos, no sentido de dar visibilidade à doença. Com o livro, pretende dar conhecimento público de projetos profissionais e empreendedores por parte destas pessoas. Temos em Portugal mais de 20 mil indivíduos com paralisia cerebral e a sociedade não tem conhecimento do que eles fazem no seu dia a dia ou como estão integradas profissionalmente. Há projetos muito curiosos e o “Por acaso…” é uma forma de dar voz a esses projetos, alertar a sociedade para a temática e para a necessidade de criar medidas políticas que criem respostas sociais.
MN – O livro foi escrito em forma de reportagem…
F.A. – Quando me propuseram escrever “Por acaso…”, eu disse que não o podia fazer, porque a história de pessoa dá um livro. O que propus foi fazer uma reportagem alargada em forma de livro. É uma narrativa jornalística sobre a história de vida de cinco pessoas e os seus projetos. Assim, escolhi especificidades e preocupações diferenciadoras de cada uma delas, de forma a contar uma história em que em simultâneo fale dessa pessoa, do projeto social em que está envolvida e das aspirações de cada uma delas. O objetivo é mostrar que são úteis e desmistificar os clichés.
MN – O que a levou a aceitar o convite?
F.A. – O meu espírito altruísta e a minha rebeldia. Acho que sempre que podemos fazer algo pela pessoa do lado, porque muitas vezes a pessoa ao nosso lado tem mais problemas do que nós. Por isso, disse imediatamente que sim.
MN – Quem escolheu as pessoas de quem se fala no livro?
F.A. – Algumas fui eu que fiz pesquisa e optei por elas. Outras foram sugeridas pela associação. Foi-me dada uma listagem, depois contactei-os e fiz a selecção.
MN – Que mensagem quer passar com “Por acaso…”?
F.A. – Estas histórias mostram que há barreiras intransponíveis, a forma como a sociedade coloca obstáculos ao outro é que torna as coisas impossíveis. Mas não é a contingência física que nos define, nem a contingência física que determina o que uma pessoa com paralisia cerebral pode ou não fazer. Apesar de haver cada vez mais respostas válidas da sociedade, continua a haver uma grande falha nos apoios a essas pessoas. Não quero adotar o discurso fatalista de que está tudo mal, mas ainda há um longo caminho a percorrer. Quem ler o livro percebe, que não é só criando passeios e vias pedonais que facilita a vida destas pessoas, vai para além disso.
MN – Enquanto jornalista lida com imensas realidades, é-lhe difícil manter a imparcialidade?
F.A. – Não acho que os jornalistas sejam seres desprovidos de sentimentos. Em todos os trabalhos acabamos por mostrar os nossos sentimentos, pode ser mais ou menos clarividente. Mas está lá sempre a nossa identidade como seres afetivos. Ao propor-me a contar estas histórias em forma de reportagem, transpus os meus próprios sentimentos e até algumas opiniões, que eventualmente numa notícia não poderia transpor. Este livro permitiu-me ter liberdade afetiva. Do ponto de vista factual o livro é objetivo, mas do ponto de vista sensorial é afetuoso, descomplexado e desprovido de clichés.
MN – Não teve problemas em assumir esse lado opinativo?
F.A. – De todo, até porque os jornalistas são seres de razão, que têm, ou devem ter, essa missão de alerta e denúncia para os problemas. Se não denunciarmos como é que as coisas que estão mal se corrigem? Se bem que não se deve confundir os jornalistas com justiceiros. Mas que temos uma função social temos.
MN – Está há 14 anos na RTP, ainda mantém o lado rebelde que falou?
F.A. – Sempre. No dia em que deixar de me preocupar com as pessoas não estarei a fazer nada nesta profissão. Não faz sentido estar nesta profissão sem causas nem convicções.
MN – Este livro mostra um lado diferente da Fátima?
F.A. – As pessoas em casa imaginam-nos como um boneco falante, mas por trás dessa imagem há uma pessoa com sentimentos, convicções… Por esse lado, acho que o livro revela um lado mais humanizado que a televisão não mostra. Na televisão, somos uma imagem construída, que muitas vezes não corresponde ao que somos enquanto pessoas.
MN – A Fátima é essencialmente pivô. Este livro deu para matar saudades da reportagem?
F.A. – Sim, deu para matar saudades de muitas coisas. Tenho muitas saudades da reportagem e deu-me para recuperar imensas práticas. Gravei as entrevistas com gravador, depois passa-las para o computador… Fez-me relembrar quando trabalhei na rádio e na imprensa escrita.
MN – O que gostaria de fazer para além de ser pivô?
F.A. – Gostava de fazer grandes reportagens, jornalismo de investigação ou documentários.
MN – Na conjuntura atual esses sonhos….
F.A. – Tornam-se difíceis de realizar, porque as empresas de comunicação social não têm verbas que se compadeçam com grandes custos para a produção de reportagens. Mas não é desculpa para não se fazer. A crise, neste momento, está a ser usada como desculpa para muitas situações e quando se vai a ver há desperdício e má gestão em tantas outras coisas. Por isso, a crise não é desculpa para não se fazer bom jornalismo em Portugal.
MN – A sociedade também fica a perder?
F.A. – Claro que sim. A propósito da desculpa da crise que impede a produção de determinado tipo de trabalhos, o próprio público sai penalizado. Não chega ao conhecimento da sociedade aquilo que deveria chegar.
MN – Acha que a sociedade tem consciência disso?
F.A. – Sim. Tenho um respeito muito grande pelo público. As pessoas não são parvas, nem desprovidas de bom senso. O público sabe o que quer ver, ler e ouvir e o que gostaria de ver, ler e ouvir. Mas, efetivamente, os órgãos de comunicação social não lhes proporciona isso, então é obrigado a ver, ler e ouvir o que lhes é disponibilizado. Isso não significa que as pessoas fiquem satisfeitas.
MN – Começou por trabalhar na rádio. É a sua grande paixão?
F.A. – É e sempre foi. Comecei com 14 anos nas rádios locais, depois passei pela TSF e pela Renascença e ainda hoje digo se profissionalmente acabar como jornalista gostaria que fosse na rádio.
MN – Nunca se proporcionou regressar à rádio?
F.A. – Não. Não estou a dizer que estou mal, mas é uma paixão que está sempre comigo e que não quero apagar.
MN – Como foi a transição da rádio para a televisão?
F.A. – Foi difícil, porque em rádio temos uma grande autonomia e uma capacidade de pôr no ar as coisas, que não se tem em televisão. A única coisa que depende de mim é aquilo que digo e tudo o resto ultrapassa-me. O que acaba por ser um bocadinho castrador e para quem vem da rádio. Isso foi uma surpresa.
MN – Vê-se a fazer jornalismo até à reforma?
F.A. – Tenho alguma dificuldade em perspetivar o futuro, devido à conjuntura, mas espero que se enquadre nas minhas expetativas. Para ser sincera, não me vejo a ser jornalista para o resto da vida, porque temos muitos momentos de frustrações e desilusões. Acho que posso ser útil numa outra actividade. Acho que posso ser válida a fazer reportagens e documentários, mas se isso não se proporcionar não posso dizer que quero ser jornalista a vida toda. Quero fazer algo que me dê prazer e que seja boa a fazê-lo.
Fotos: Move Notícias